quarta-feira, 19 de maio de 2010
Ficha limpa, inelegibilidade, constitucionalidade
"O Senado aprovou o Projeto de Lei Complementar que institui a inelegibilidade dos chamados "fichas sujas" (há uma ótima matéria jornalística no portal G1, que pode ser lida aqui). Em primeiro lugar, tenho sinceras dúvidas sobre a constitucionalidade da inelegibilidade cominada a alguém que, embora condenado, ainda tenha recursos pendentes. Ora, se a Constituição fixou que a suspensão dos direitos políticos decorre da condenação criminal transitada em julgado (art.15, inciso III), tenho enorme dificuldade em imaginar que uma lei complementar pudesse ser insubmissa àquele preceito, aplicando a inelegibilidade para a condenação criminal decretada por órgão colegiado, ainda pendente de recurso.
É certo que mais uma vez se constrói uma argumentação simplista para ornar a nova lei de constitucionalidade. Foi assim com o art.41-A, não poderia ser diferente agora. Em nome dos melhores princípios, as piores teses. Já critiquei aqui a argumentação do juiz maranhense Márlon Jacinto Reis, que escreveu defendendo a constitucionalidade da nova inelegibilidade, partindo ele de uma teoria da inelegibilidade que, com a devida vênia, não se põe de pé (vide aqui). Fernando Neves, nessa matéria publicada pelo portal G1, aderiu ao pensamento de Márlon Reis, usando aquele argumento simplista, lapidarmente resumido na seguinte proposição:
"Inelegibilidade não pressupõe culpa formada, não deve haver discussão sobre presunção da inocência. Pode haver inelegibilidade por parentesco, estar em cargo, falta de domicílio eleitoral ou filiação partidária. Causas que não têm nada a ver com condenação criminal"
Fernando Neves, ex-ministro do TSE
Ora, os exemplos citados por Fernando Neves para fundamentar a existência de inelegibilidade sem culpa formada são de inelegibilidade inata, que não decorrem de fatos ilícitos. Quem poderá ser apenado por ser irmão de um Governador? Quem poderá sofrer sanção porque não está filiado a um partido político? Quem poderá ser inculpado por ser analfabeto? Evidentemente que ninguém, simplesmente porque não há fato jurídico ilícito na relação de parentesco, na ausência de filiação, no analfabetismo etc. Logo, a afirmação de Fernando Neves é juridicamente oca, vazia. Visa unicamente criar uma gambiarra argumentativa para defender a constitucionalidade da nova hipótese de inelegibilidade, que não resiste a uma aproximação teórica minimamente consequente.
A questão a ser posta é outra: a Constituição, em face do princípio da não-culpabilidade ou da presunção de inocência, admite a cominação de inelegibilidade - uma gravíssima sanção com duração de 8 anos - para quem ainda tem recursos pendentes de julgamento? Admitamos, apenas para argumentar, que alguém tenha sido condenado criminalmente em segunda instância e maneje recurso especial e extraordinário para nulificar o processo, por quebra de graves princípios constitucionais. Se não conseguisse uma medida liminar, suspendendo os efeitos eleitorais (acessórios, anexos), ficaria impedido de concorrer na eleição. E se, ao final, obtivesse êxito no recurso, obtendo a nulidade do processo penal e da decisão que o condenou? Estaria o cidadão impedido de concorrer a um mandato eletivo validamente em razão de uma decisão pendente de recurso e possível de ser reformada.
Já me manifestei detidamente sobre esses aspectos jurídicos. Vou aguardar a sanção presidencial e a publicação da nova Lei Complementar para fazer uma análise mais detalhada, inclusive sobre a sua constitucionalidade ou não. Em princípio, tenho dúvidas sinceras sobre a sua constitucionalidade.
Se tivéssemos que fazer uma comparação entre uma norma existente e a nova hipótese de inelegibilidade, buscando dar consistência à tese da sua constitucionalidade, teríamos que a comparação adequada deveria ser feita com a alínea "i" do inciso I do art.1º da LC 64/90, que prescreve:
i) os que, em estabelecimentos de crédito, financiamento ou seguro, que tenham sido ou estejam sendo objeto de processo de liquidação judicial ou extrajudicial, hajam exercido, nos 12 (doze) meses anteriores à respectiva decretação, cargo ou função de direção, administração ou representação, enquanto não forem exonerados de qualquer responsabilidade; (grifei)
Note-se: nesta norma, a inelegibilidade cominada potenciada ("enquanto não forem exonerados de qualquer responsabilidade") é aplicada àqueles que tenham exercido, nos 12 meses anteriores à decretação da liquidação judicial ou extrajudicial de estabelecimento de crédito, financiamento ou seguro, a função de direção, administração ou representação, ainda que não haja decisão judicial transitada em julgado declarando a sua culpabilidade. O simples fato de ter exercido aquelas funções naquele prazo gera a inelegibilidade cominada potenciada sem prazo certo, dependendo de um acontecimento futuro: a exoneração das responsabilidades.
Aqui, como se observa, o exemplo para sustentar a constitucionalidade da nova hipótese de inelegibilidade por vida pregressa poderia ser, em tese, legítimo, partindo de uma hipótese já existente. No art.1º, I, "i" da LC 64/90 se hipotiza uma inelegibilidade cominada potenciada em que não se parte da condenação por conduta ilícita na administração de estabelecimento de crédito, financiamento ou seguro, mas sim da simples existência concreta de uma situação grave, cuja responsabilidade inicial é tomada como objetiva, em que se recomenda que o nacional fique excluído do processo eleitoral. Nada obstante, desconheço tenha esse preceito sido alguma vez aplicado. Ao menos na consulta que fiz ao site do TSE, não se encontra nenhuma jurisprudência que servisse de precedente.
Como podemos observar, a única hipótese de inelegibilidade que poderia servir à comparação justa com a que está sendo criada simplesmente não teve ao longo do tempo aplicabilidade, de modo que também não pode ser objeto de análise sobre a sua constitucionalidade.
Tão logo seja publicada a nova Lei Complementar teremos ensejo de conversar sobre todas essas questões."
Ficha limpa, inelegibilidade, constitucionalidade
"O Senado aprovou o Projeto de Lei Complementar que institui a inelegibilidade dos chamados "fichas sujas" (há uma ótima matéria jornalística no portal G1, que pode ser lida aqui). Em primeiro lugar, tenho sinceras dúvidas sobre a constitucionalidade da inelegibilidade cominada a alguém que, embora condenado, ainda tenha recursos pendentes. Ora, se a Constituição fixou que a suspensão dos direitos políticos decorre da condenação criminal transitada em julgado (art.15, inciso III), tenho enorme dificuldade em imaginar que uma lei complementar pudesse ser insubmissa àquele preceito, aplicando a inelegibilidade para a condenação criminal decretada por órgão colegiado, ainda pendente de recurso.
É certo que mais uma vez se constrói uma argumentação simplista para ornar a nova lei de constitucionalidade. Foi assim com o art.41-A, não poderia ser diferente agora. Em nome dos melhores princípios, as piores teses. Já critiquei aqui a argumentação do juiz maranhense Márlon Jacinto Reis, que escreveu defendendo a constitucionalidade da nova inelegibilidade, partindo ele de uma teoria da inelegibilidade que, com a devida vênia, não se põe de pé (vide aqui). Fernando Neves, nessa matéria publicada pelo portal G1, aderiu ao pensamento de Márlon Reis, usando aquele argumento simplista, lapidarmente resumido na seguinte proposição:
"Inelegibilidade não pressupõe culpa formada, não deve haver discussão sobre presunção da inocência. Pode haver inelegibilidade por parentesco, estar em cargo, falta de domicílio eleitoral ou filiação partidária. Causas que não têm nada a ver com condenação criminal"
Fernando Neves, ex-ministro do TSE
Ora, os exemplos citados por Fernando Neves para fundamentar a existência de inelegibilidade sem culpa formada são de inelegibilidade inata, que não decorrem de fatos ilícitos. Quem poderá ser apenado por ser irmão de um Governador? Quem poderá sofrer sanção porque não está filiado a um partido político? Quem poderá ser inculpado por ser analfabeto? Evidentemente que ninguém, simplesmente porque não há fato jurídico ilícito na relação de parentesco, na ausência de filiação, no analfabetismo etc. Logo, a afirmação de Fernando Neves é juridicamente oca, vazia. Visa unicamente criar uma gambiarra argumentativa para defender a constitucionalidade da nova hipótese de inelegibilidade, que não resiste a uma aproximação teórica minimamente consequente.
A questão a ser posta é outra: a Constituição, em face do princípio da não-culpabilidade ou da presunção de inocência, admite a cominação de inelegibilidade - uma gravíssima sanção com duração de 8 anos - para quem ainda tem recursos pendentes de julgamento? Admitamos, apenas para argumentar, que alguém tenha sido condenado criminalmente em segunda instância e maneje recurso especial e extraordinário para nulificar o processo, por quebra de graves princípios constitucionais. Se não conseguisse uma medida liminar, suspendendo os efeitos eleitorais (acessórios, anexos), ficaria impedido de concorrer na eleição. E se, ao final, obtivesse êxito no recurso, obtendo a nulidade do processo penal e da decisão que o condenou? Estaria o cidadão impedido de concorrer a um mandato eletivo validamente em razão de uma decisão pendente de recurso e possível de ser reformada.
Já me manifestei detidamente sobre esses aspectos jurídicos. Vou aguardar a sanção presidencial e a publicação da nova Lei Complementar para fazer uma análise mais detalhada, inclusive sobre a sua constitucionalidade ou não. Em princípio, tenho dúvidas sinceras sobre a sua constitucionalidade.
Se tivéssemos que fazer uma comparação entre uma norma existente e a nova hipótese de inelegibilidade, buscando dar consistência à tese da sua constitucionalidade, teríamos que a comparação adequada deveria ser feita com a alínea "i" do inciso I do art.1º da LC 64/90, que prescreve:
i) os que, em estabelecimentos de crédito, financiamento ou seguro, que tenham sido ou estejam sendo objeto de processo de liquidação judicial ou extrajudicial, hajam exercido, nos 12 (doze) meses anteriores à respectiva decretação, cargo ou função de direção, administração ou representação, enquanto não forem exonerados de qualquer responsabilidade; (grifei)
Note-se: nesta norma, a inelegibilidade cominada potenciada ("enquanto não forem exonerados de qualquer responsabilidade") é aplicada àqueles que tenham exercido, nos 12 meses anteriores à decretação da liquidação judicial ou extrajudicial de estabelecimento de crédito, financiamento ou seguro, a função de direção, administração ou representação, ainda que não haja decisão judicial transitada em julgado declarando a sua culpabilidade. O simples fato de ter exercido aquelas funções naquele prazo gera a inelegibilidade cominada potenciada sem prazo certo, dependendo de um acontecimento futuro: a exoneração das responsabilidades.
Aqui, como se observa, o exemplo para sustentar a constitucionalidade da nova hipótese de inelegibilidade por vida pregressa poderia ser, em tese, legítimo, partindo de uma hipótese já existente. No art.1º, I, "i" da LC 64/90 se hipotiza uma inelegibilidade cominada potenciada em que não se parte da condenação por conduta ilícita na administração de estabelecimento de crédito, financiamento ou seguro, mas sim da simples existência concreta de uma situação grave, cuja responsabilidade inicial é tomada como objetiva, em que se recomenda que o nacional fique excluído do processo eleitoral. Nada obstante, desconheço tenha esse preceito sido alguma vez aplicado. Ao menos na consulta que fiz ao site do TSE, não se encontra nenhuma jurisprudência que servisse de precedente.
Como podemos observar, a única hipótese de inelegibilidade que poderia servir à comparação justa com a que está sendo criada simplesmente não teve ao longo do tempo aplicabilidade, de modo que também não pode ser objeto de análise sobre a sua constitucionalidade.
Tão logo seja publicada a nova Lei Complementar teremos ensejo de conversar sobre todas essas questões."
Nenhum comentário:
Postar um comentário